O DIA EM QUE MEU IRMÃO SAIU DE CASA

As lembranças são meio nebulosas para mim. Lembro-me de uma cena: em meio a panfletos impressos no mimeógrafo a álcool, meu irmão mais velho, ansioso, andava de um lado para outro.
Depois ele sumiu e nunca mais voltou. Voltou para Brasília, voltou para a vida fora da clandestinidade. Mas nunca mais voltou para a minha vida de adolescente. Ele era meu irmão mais velho; hoje eu sei que de velho não tinha nada. Mas para quem é irmã mais nova, oito anos mais nova, ele era como um herói. Brigava com outros rapazes, se algum mexia comigo, me levava ao cinema livre, quando os mais velhos não queriam assistir "filme de criança".
Depois fiquei sabendo que ele não era só o meu herói. Ele foi herói da luta contra a ditadura. Ele foi herói do Brasil!
Hoje faz quarenta anos que a UnB foi invadida! Não foi só a UnB que foi invadida. Os lares foram invadidos, a privacidade das pessoas foi invadida. A minha alma foi invadida e de lá arrancaram a alegria, a inocência e a esperança.
Ficou uma cicatriz que de vez em quando ainda se abre e dói. Não uma dor tão dolorida como a de outrora, mas uma dor de lembrança da dor. Uma dor pela criança ferida. Uma dor pelo tempo perdido. Uma dor pela inconformidade da violência sofrida. Não só a minha dor, mas a dor que fez chorarem tantas mães, tantos pais, tantos filhos, cônjuges, amigos e, como eu, irmãos. Uma dor que fez chorar o Brasil.
Uma dor pelos outros povos que choram também. Uma dor pelos tempos de guerra, mesmo que não sejam aqui. Uma dor pelo autoritarismo mascarado pela festa. Uma dor pela perseguição das diferenças. Uma dor causada por quem se acha melhor dos que os outros e com mais direito de ter mais. Por quem acha que pode tirar do outro o que é de todos. Por quem pensa que é dono de tudo, dono da verdade, dono do mundo!
Que a lembrança da história triste possa transformar as mentes e os corações, possa trazer consciência universal. Possa trazer Amor e Paz!
Minha homenagem, nesta data, a todos os estudantes que foram perseguidos na ocupação pelos militares da Universidade de Brasília, em 29.08.1968. Mas, especialmente, minha homenagem póstuma ao meu irmão, Paulo Sérgio Ramos Cassis (1946 – 2005), um dos sete estudantes que estavam sendo “caçados” naquele dia.

Comentários

  1. É duro sentir esta dor... que teima sempre em voltar.
    Esta invasão, não só das universidades, mas dos lares, da alma, das vidas, foi devastadora. Mas o Paulo dedicou a sua vida à LUTA, mais do que tudo, esta foi a sua bandeira até o fim de sua vida. Que tenha valido!
    Um beijo, da sua irmã Márcia

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  2. Cara Neá,
    Tenho muito medo de quem se acha dono da verdade, dono da melhor religião, e por isso, em nome desse "deus" que não é real, ou em nome de uma ideologia cretina se faz e desfaz dos que pensam diferente. Estamos a todo momento vendo a dor que trazem ao mundo. No Brasil, pensar diferente é "ser comunista", é ser encrenqueiro, é ser radical.
    Apesar de conhecer o sentimento de perda de todos nós pelo Paulo, tenho muito orgulho de ser da família de um homem como ele. O Brasil precisa de mais pessoas como o Paulo!



    Thais

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