CACHINHOS DE OURO



A estória é antiga e habitou no imaginário de crianças da minha geração. Trata-se de uma estória pouco conhecida, mas foi publicada no volume três da coleção "O Mundo da Criança", na edição da década de 50, de capa vermelha.
Quem viveu esse tempo sabe do que estou falando e deve estar se deleitando, como eu, com essas lembranças. Vou contá-la da forma com que eu me lembro, pois era minha estória preferida, do jeito que eu ouvia, pois na época eu tinha apenas três anos.

Cachinhos de Ouro era uma menina loirinha com cabelos cacheados.

Um belo dia foi passear pela floresta e encontrou uma casinha bem bonitinha.
Curiosa, Cachinhos de Ouro olhou pela janela e verificou que não havia ninguém em casa.

De mansinho, foi entrando. Na sala de estar havia três poltronas. Sentou na maior e achou muito dura. Sentou na do meio e achou muito macia. Sentou na menorzinha e gostou tanto que ficou sentadinha por um tempo.

Logo sentiu um cheiro de mingau. Olhou e viu a mesa posta, com três lugares. Sentou onde tinha o prato maior e provou o mingau. Achou muito... (não me lembro, mas acho que era muito quente). Depois provou o mingau do prato um pouco menor e (não me lembro o porquê), também não gostou. Experimentou então o do pratinho menor e achou uma delícia... e tomou todo o mingau.

Cansada, foi para o quarto. Deitou na cama maior e achou muito dura... deitou na do meio e achou muito macia aí então... deitou na caminha menor e achou tão gostosa que acabou dormindo.

Enquanto ela dormia, os "donos" da casa chegaram: o papai urso, a mamãe ursa e o filhote ursinho.

Para resumir a estória: cada um dos personagens nota a invasão. O Papai urso fala: "Alguém sentou na minha cadeira" (e minha mãe, contando a estória, falava com a voz grossa). As falas correspondentes se repetiam, ora com a voz fina, ora com a voz de criança. Só que o ursinho, birrento, sempre reclamava chorando... até que, depois de descobrir que alguém tomou todo o seu mingau, ele descobre que "alguém está dormindo na minha caminha"... e começa a chorar. Com aquela choradeira toda, a menina acorda assustada e sai correndo.

A estória termina com "aquela lição de moral": "E nunca mais cachinhos de ouro entrou na casa dos outros..." ou algo parecido.

Lembrei-me dessa estória nesses dias, acho que, talvez, porque, com os cabelos clareados ("as mulheres não envelhecem, elas ficam loiras"), e usando-os naturalmente cacheados nestes tempos, percebi que me tornei uma "cachinhos de ouro". E aí viajei pelo tempo, pelas minhas histórias, pelas minhas análises.

As estórias infantis contêm temas que habitam no inconsciente coletivo. É um assunto muito estudado pelos analistas junguianos. Esta estória, no entanto, por ser pouco conhecida, parece-me que ainda não foi analisada. Então vamos à nossa análise.

Cachinhos de Ouro era uma menina corajosa, curiosa e ousada! Competências atualmente muito valorizadas no mercado de trabalho. O ursinho era chorão, birrento e egoísta. Parece-me um personagem regredido, mimado e super protegido pelos pais. Os pais (ursos) não tinham nenhuma privacidade: dormiam no mesmo quarto com o filho, o que reforçava a dependência e o apego do ursinho. A "família" saiu de casa e deixou tudo aberto: um convite para que alguém entrasse na casa.

A menina foi apenas curiosa, como toda criança. O ursinho, se fosse uma criança mais sociável, poderia ficar contente com a visita, acordar a menina e convidá-la para brincar. Afinal ela "era de paz". Se não estivesse bem intencionada, ela teria destruído ou roubado e ido embora antes da família chegar. Ela apenas gostou do lugar, sentiu-se à vontade e acabou relaxando e dormindo.

Mas a estória termina "crucificando" a menina: "era ela quem estava errada!". Ela é que não deveria ser curiosa, ousada, corajosa. Não deveria buscar novos espaços. Fico pensando na Cachinhos de Ouro adulta. Acho que ela teria crescido achando graça do episódio. Com mais cuidado, talvez, mas acho que ela continuaria curiosa e ousada. Afinal foi só um susto. Não tinha nenhum adulto dizendo para ela nunca mais fazer aquilo.

O problema é que muitas meninas, que ouviram essa estória com a clássica "lição de moral", receberam um “mandado” que ficou registrado em seu inconsciente pessoal.

Fico pensando quantas deixaram de ser curiosas, deixaram de buscar novos horizontes, conquistar novos espaços, com medo da reação de pessoas "birrentas", egoístas e "choronas".

Quantas, ouvindo os mandados internos, deixaram de ousar, de transgredir o estabelecido, mesmo que este "status quo" não seja o justo e correto.

E, pior ainda: quantas continuam repetindo a estória e a história, transmitindo para suas filhas o mandado recebido.

Comentários

  1. Dulcinéa,
    Lembro bem dessa estorinha, que era a favorita da minha Mãe. Ela comprava sempre que encontrava alguma edição (não é muito comum, mas também não é rara) e todos os netos tem um livrinho diferente.
    Só que ela contava começando com os ursos e sempre mandando o ursinho chorão calar a boca. O comentário final era "que menina boba", quando ela saía correndo, com medo dos ursos.
    No último domingo a Mariana foi contar a estória para a Haydée (sobrinha do Tácito com quase 3 anos) e repetiu todas as entonações da minha Mãe. Eu fiquei admirada de como ela lembrava tão direitinho e também lembrei das "matrioskas", aquelas bonequinhas russas que vem uma dentro das outras, que é como venho pensando nas mulheres da casa desdo o dia das mães, quando a Mariana fez, ensinada por mim, uns sachês de crochê que minha vó Irene fazia. Isto já é outra história, mas me consolou um pouco saber que tantas coisas femininas continuam, se desdobram nas nossas filhas e netas. Uma mulher tem sempre dentro de si várias outras mulheres. Já li um livro policial que se chamava "Uma longa fila de homens mortos". Nós temos uma longa fila de mulheres vivas e ainda nos influenciando.
    Coincidências?
    Abraços,
    Neca.

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  2. Querida Dulce,

    Ah!!! Os contos de fada.........Que bela abordagem você fez. Acabei tirando do baú os momentos em que a minha avó lia esta estorinha para mim. O livro era lindo, e a menina, hum, que bonitinha. Incrível era a dualidade com que ela passava a moral da estória: "A gente não deve mexer nas coisas dos outros" e "Puxa vida, qual o problema desses ursinhos deixarem a menina provar do mingau e descansar um pouco na cama?"
    Mas o conto de fada que realmente me fascinava era Cinderela, as paisagenes, o castelo, os bichinhos, era tudo lindo. Analisando meu sentimento naquele tempo, devia ter uns 6 ou 7 anos, o que me fascinava não era o príncipe que chegava para salvá-la, e sim o triunfar da Gata Borralheira. Eu era a própria Gata Borralheira, torcendo para triunfar diante das figuras de autoridade (os mandos e desmandos, as críticas, o tudo certinho a tempo e a hora, e assim vai).
    O livro Individuação nos contos de fada, de Marie-Louise von Franz, é bem interessante para um aprofundamento neste tema.
    Parabéns pelo texto.
    Tania

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  3. Gosto muito deste conto.Me faz lembrar meu sobrinho pelo os cachinhos de Ouro e também pela as travessuras.

    Ione Santos

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