Isabella: Protagonista da violência doméstica

As cenas são reais, dolorosas, mas comuns de serem ouvidas na clínica psicológica: são adultos que lembram com detalhes das vezes em que foram espancados quando criança; são recordações do pavor diante do cinto do pai e da dor provocada pelas sucessivas chibatadas pela força de um homem diante de uma criança indefesa; são lembranças, muitas vezes, do conivente silêncio da mãe; ou então, a lembrança da violência da mãe aliada à ausência paterna, ou a violência de irmãos diante da ausência de ambos os pais, ou a solidão de terem sido deixados sozinhos em casa, cuidando de irmãos menores.

Fatos reais que, como inúmeros outros que acontecem em tantas “famílias” de crianças indefesas, não resultaram em manchetes de jornal. Permitiram à vítima o direito à vida, mas uma vida marcada pelo estupro psicológico no próprio lar. Após anos, as cenas são relembradas, processadas, permitindo a cura da ferida emocional através da psicoterapia.

Cenas comuns na clínica psicológica, que povoam a lembrança, principalmente, de adultos jovens (nascidos na década de 70/80), são as cenas em supermercados. A criança, levada às compras pelos pais, exposta às guloseimas que os pais, ou por falta de dinheiro não podem comprar, ou por consciência da necessidade de uma boa alimentação não o fazem, pede, insiste, chora, irritando o adulto, que perde a paciência. Talvez, receosos do curioso e acusador olhar alheio, os pais adiem o momento do castigo.

Outras cenas, igualmente relembradas nos processos de psicoterapia de adultos, são as cenas no interior do carro: os irmãos brigam entre si, disputando o amor e atenção dos pais, que aplicam ali mesmo um castigo físico. Ouvi esse relato mais de uma vez.

O caso Isabella traz à tona a realidade oculta pela vergonha de pais que, impacientes com seus filhos, projetam nos inocentes suas frustrações, deslocam para eles sua raiva. A raiva, muitas vezes, porque a existência daquela criança, que não pediu para nascer, veio “atrapalhar” planos de vida traçados pelo desejo de satisfazer as exigências de uma sociedade cujos valores incentivam o consumo exagerado e o status perseguido e nem sempre alcançado.

Mas há também aqueles analisandos que confessam as culpas recentes de, no papel de pais, perderem a paciência com seus filhos e, mesmo sabendo do prejuízo emocional e risco de espancarem a criança, o fizeram, pelo seu próprio descontrole emocional.

Sem defender nem justificar os atos bárbaros praticados, ao ler as notícias sobre o caso Isabella, e aos assistir nos telejornais a fúria de populares que desejam linchar os jovens, pai e madrasta da vítima, não posso deixar de me perguntar se esta fúria não seria um deslocamento da raiva contida contra os seus próprios filhos que, quando crianças também os irritava, ou contra seus próprios pais que os espancavam também...

Quem vai saber? O fato é que é inadmissível o que aconteceu. Isabella é protagonista da violência que existe em tantos lares brasileiros. Ela se foi, mas sua morte servirá como sacrifício vivo, trazendo à tona a realidade do risco pelo qual passam todos os dias tantas crianças indefesas!

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