ALÉM DO BOJADOR

"Ó mar salgado, quanto de teu sal são lágrimas de Portugal!”
Fernando Pessoa
Há momentos na vida em que temos a sensação de que vamos nos esvair nas lágrimas que correm de nossos olhos, que vamos nos afogar no mar salgado, que vamos nos diluir.
São momentos de extrema dor. Aquilo que queríamos que fosse, não é. O que se tinha, se foi, o que se quer, não chegou.
Entramos nesse mar (tal qual o povo cativo na marcha para a Terra Prometida), por não ter outra saída. Entramos no mar e marchamos, caminhamos adentrando o mar. Mas, somente quando as águas nos chegam no limite, o mar se abre e conseguimos atravessá-lo em terra seca.
O processo de psicoterapia se inicia muitas vezes nessa fase. O choro é abundante. Escuto aquela pessoa, à minha frente, angustiada, imersa em sua dor. Nada posso fazer. Apenas estar ali. Ela confessa suas angústias, seus descaminhos, seu infortúnio e chora, e chora, e chora! No choro, a angústia se dissolve. Tal qual após um temporal, a terra viceja, os raios de sol surgem, iluminando o caminho.

Para ir além, é preciso olhar para si mesmo. E não é fácil olhar-se no espelho. Enxergar a própria alma, que não nos parece tão bela quanto gostaríamos que parecesse, mas que, em sua essência, resplandece.
"Por te cruzarmos, quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas deixaram de casar, para que fosses nosso, ó mar!"
Quantas vezes pensamos que rezamos em vão? Parece-nos que nossas preces não passam do teto. Parece-nos que não somos merecedores de sermos atendidos em nossos desejos. Quantas vezes, tal quais as noivas portuguesas, fazemos planos que não conseguimos realizar?
Fernando Pessoa, através da metáfora, nos fala do processo de transformação iniciado no mar. Mar de lágrimas, onde se dissolvem nossas esperanças e nossos planos.
Valeu a pena?” Pergunta o poeta. Valeu a pena tanto sacrifício para as conquistas portuguesas? Tudo vale a pena, responde. “Tudo vale a pena se a alma não é pequena!”
A alma pequena não entende o significado do sofrimento. A alma pequena não transcende o sofrimento. A alma pequena não alcança a dimensão maior da realização.

”Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor.”
A alma pequena contenta-se em ficar aquém do Bojador.
O Cabo do Bojador, até o século XV, representava para os portugueses o maior desafio para se alcançar novos mares, novos continentes. As embarcações que tentavam contorná-lo desapareciam, o que criou o mito da existência de monstros marinhos e da intransponibilidade do Bojador. Até que, em 1434, Gil Eanes conseguiu ultrapassar o cabo. Para essa proeza foram necessárias coragem e estratégia. Ao invés de tentar contornar o cabo próximo ao continente, Eanes afastou-se da costa, evitando as correntes marítimas que dificultavam a passagem.
Muitas vezes não acreditamos que conseguiremos ultrapassar o "nosso Bojador", pois acreditamos que é impossível e que existem "monstros marinhos", que são os nossos próprios monstros do inconsciente. É a nossa própria sombra que nos impede de enxergar a luz.
Nossos medos também nos impedem de "passar além do Bojador", pois nos apegamos aos problemas. Quando nos afastamos, tomamos distância, conseguimos enxergá-los em suas dimensões adequadas. Nos afastamos do campo de tensão e conseguimos encontrar soluções. Quando vemos de longe, tudo fica menor. Para encontrar alternativas é preciso tomar distância, assim como fez Eanes, afastando-se da costa do continente africano, para passar "Além do Bojador".
E o Poeta nos brinda ao final com uma preciosa pérola da Verdade mais antiga e profunda:
"Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu."
Somente enfrentado o perigo e o abismo do mar (que simboliza nosso inconsciente), e tendo a coragem de ir fundo em nossas dúvidas, medos e angústias, é que conseguiremos “chegar ao céu”. Enxergar o céu espelhado no mar significa estar mais próximo do nosso Self, do nosso “Si Mesmo”, da nossa Centelha Divina. Aproximando-nos da nossa essência, podemos viver a plenitude de nossas vidas.

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